quinta-feira, 6 de agosto de 2009

O Baptismo

Fevereiro de 1970, dia 28, cinco horas da manhã, o dia começa a despontar, em África o sol nasce cedo. Na parada do quartel geral de adidos no Grafanil, em Luanda, era grande a azáfama, preparávamos a partida do batalhão para o norte de Angola, para a região dos Dembos, a sede de batalhão ficaria instalada em Nambuangongo, uma companhia na Beira-Baixa e outra no Quixico. A propósito de Nambuangongo, veio-me à memória o ano de 1961, e ver na televisão as imagens da tomada deste reduto “terrorista” pelas tropas portuguesas, com a colocação da bandeira na Igreja. Na altura, tinha treze anos, passados sete anos, lá ia eu, precisamente para aquele sítio…
O comandante de Batalhão, reuniu as tropas e num discurso típico de militar, com algumas “bojardas” à mistura, informou que o percurso não oferecia cuidados de maior e que ao anoitecer estaríamos no nosso destino, ele não nos acompanharia, porque iria no dia seguinte, na DO, avioneta de reconhecimento, cuja principal missão era levar o correio, frescos e recolha de doentes, aos aquartelamentos no mato.
Terminada a lengalenga do comandante, avançámos na direcção das viaturas que nos levariam aos nossos destinos, estas eram viaturas civis, requisitadas pelo exército, com grandes taipais, onde carregámos as malas, caixotes e tudo o que tínhamos trazido do Puto.
Saímos de Luanda pela estrada de Viana rumo ao Caxito, a estrada era boa, toda alcatroada, em pouco tempo lá chegámos, o próximo destino seria Quicabo, a estrada transformou-se em picada, mas mesmo assim andámos bem, o único inconveniente era a poeira que se alojava, nos cabelos, na cara e com a transpiração formava um pasta acastanhada que fazia que todos, brancos e pretos, tivessem a mesma cor. O terreno era plano e o capim tinha sido cortado vários metros junto à picada. Como sardinha em lata, uns sentados nas malas e nos caixotes outros em pé agarrados aos taipais, seguíamos animados, na galhofa a contar anedotas, dando razão ao comandante, afinal aquilo era “canja”. Por volta das dez horas, avistámos o primeiro aquartelamento, com as suas torres de vigia em cada extremo do mesmo. A paragem seria breve, o suficiente para beber uma ou duas “Nocais” bem fresquinhas. Neste curto período de tempo fartámo-nos de ouvir as bocas dos “velhinhos”, que nós “maçaricos”, tivemos de aguentar. Rapidamente, pusemo-nos a andar, rumo ao próximo aquartelamento, distante cerca de trinta quilómetros, de seu nome Balacende.
A paisagem começou a alterar-se, surgiram as primeiras elevações, o capim parecia estar mais perto da picada, aqui e ali algumas acácias salpicavam o terreno, o calor apertava cada vez mais, abafávamos, abríamos a boca como peixes fora de água, não estávamos habituados àquela canícula, ao fim e ao cabo ainda à poucos dias estávamos no Puto, com temperaturas negativas, felizmente, ao longe, começámos a vislumbrar Balacende, estávamos a cerca de dois quilómetros…
De repente, ouvimos o som de uma rajada de metralhadora, com os olhos arregalados olhámos uns para os outros, a primeira reacção foi agarrar as armas ao mesmo tempo que olhávamos para o capim, não fossem “ eles” estar ali à nossa espera, uns por cima dos outros, saltámos da camioneta, acachapámo-nos na berma da picada, olhámos uns para os outros, e resolvemos dar uns tiros para o capim à nossa frente, imaginávamos que “eles” estavam ali mesmo, à nossa espera…como não sentimos qualquer reacção demos um salto em frente e deitámo-nos no capim afastados uns dos outros cerca de um metro, entretanto, o barulho era ensurdecedor, eram cerca de trezentas G3 a ripostar tudo ao mesmo tempo, começámos a ouvir vozes para cessar o fogo, a pouco e pouco o barulho foi diminuindo, foi então, que ouvimos os gritos… vinham da viatura que vinha atrás de nós, “tragam um médico”, “tragam uma maca”, diziam, olhámos uns para os outros, o pânico estava instalado, uns murmuravam “ai minha mãezinha”, vim a constatar que era a frase que mais se pronunciava quando estávamos em aflição…quando o som das nossas armas se calou, ouvimos de novo a PPSH deles, parecia o som de castanhas a estalar… se os nossos corpos tivessem a propriedade de furar enfiávamo-nos pela terra abaixo…começámos a perceber que fazia parte da estratégia deles obrigarem-nos a gastar munições, certamente, estariam bem abrigados, e os tiros que disparávamos não tinham qualquer efeito, optámos por ficar quietos, imóveis, a ouvir o que se passava ao nosso redor, passado estes momentos de pânico, fosse pelo medo, fosse pelo calor do sol que caía a pique sobre nós, tínhamos as gargantas secas como cortiça, só que não tínhamos água, os cantis tinham ficado na camioneta, ainda por cima, estávamos a ser mordidos por formigas, de grande cabeça vermelha que, cada vez que as arrancávamos, deixavam a cabeça agarrada ao nosso corpo, nesta altura do campeonato, já praguejávamos por todo o lado, mas uma coisa era certa, dali não saíamos.
Tinha decorrido uma hora, e nós ali, a ouvirmos os gemidos do desgraçado que tinha sido atingido, presumimos que já estivesse pelo menos com um enfermeiro. De repente, ouvimos o barulho de uma viatura, olhámos na direcção da picada, em sentido contrário aos camiões, vinha um Unimog, com meia dúzia de “velhinhos” de Balacende, vinham a pé, em cima só o condutor e o apontador de metralhadora, gritavam para nos levantarmos, e assim o fizemos, pois se eles vinham ali pelo meio da picada com aquele ar de segurança, era porque o ataque tinha terminado, não deixámos de sentir inveja pelo à vontade como os “Rambos” se bamboleavam perante nós, aqueles eram, para nós, os maiores. Lá nos levantámos, e em sofreguidão, subimos para a camioneta, íamos finalmente matar a sede, agarrámos os cantis, e surpresa das surpresas, estes estavam vazios, olhámos incrédulos e foi então que reparámos no “Alentejano” e no “Cantanhede” que nos miravam com olhinhos comprometedores, conclusão, quando a “tourada” começou, acachaparam-se no meio das malas e dos caixotes e para matarem o tempo e o medo optaram por beber dos nossos cantis, entre os dois, devem ter bebido uns vinte litros e nem todos eles levavam água…
Em Balacende, comemos ração de combate, matámos a sede, ouvimos as bocas do costume, alertaram-nos para as emboscadas que, de certeza, iríamos sofrer nas “sete curvas” ou “curvas da morte”, que íamos apanhar a meio do caminho para a Beira Baixa, não havia dúvida, aquele pessoal era mesmo animador…
Quando entrámos para as viaturas, parecíamos um bando de condenados, agora já não íamos na galhofa, agora levávamos as armas aperradas a apontar para a berma da picada. A paisagem tinha-se alterado, haviam mais morros, nalguns sítios a mata aproximava-se da picada, cada vez mais sinuosa, o piso, era muito mais irregular, cheio de buracos, as camionetas lá avançavam aos solavancos, o pessoal em jeito de pilhéria, dizia que o mar estava bravo, lembrando a saída de Lisboa, a bordo do “Niassa”, onde apanhámos um violento temporal.
Perto das sete curvas, descemos das viaturas e iniciámos uma caminhada pela borda da picada, não seríamos surpreendidos dentro das viaturas, tomámos então contacto pela primeira vez, com o capim, com os arbustos, com o terreno e diga-se que não era fácil, andámos assim cerca de dois quilómetros, demorando cerca de uma hora, a continuar assim, nunca mais chegávamos ao nosso destino, por isso, foi com alívio que recebemos ordem para saltamos de novo para as camionetas. Estávamos a meio caminho da Beira Baixa, saímos das sete curvas, a picada cortava um morro, um lado com altura ao nível dos taipais das camionetas, do outro uma baixa que se estendia por um vale de vegetação verdejante. Nem um quilómetro tínhamos percorrido, quando fomos de novo surpreendidos pelo matraquear das metralhadoras deles, tivemos um morto…